
Peregrinos
- Caneta Peregrina null
- há 3 dias
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Em meados de 1950, um jovem casal olhava o céu límpido do Ceará. Já com muitos filhos, decidiram empreender uma peregrinação cheia de esperança. Nessa época o sol rachava sua terra natal. Em consequência, da terra – outrora tão fértil – não brotava alimento, apesar de todo suor derramado nela. O prato na mesa estava vazio, não se ouvia mais o cacarejar das galinhas ciscando no quintal, acompanhadas de seus pintinhos que, mais tarde, se tornariam galinhas poedeiras, capões ou galinhas gordas para o almoço de domingo. O quintal estava seco e vazio. O silêncio era quebrado pelo choro das barrigas imaturas e famintas. O sertanejo é orgulhoso, não sabe pedir. Só sabe contar com a ajuda dos braços e pernas que Deus lhe deu. A enxada é a companheira, sua amiga. O sol e a luta diária na roça teimosa deixaram o cenho do seu Anastácio franzido, parecendo estar sempre zangado, porém, quem topava com ele iniciando uma conversa, surpreendia-se com seu bom humor. Era trabalhador durante o dia, no entanto, boêmio à noite. Depois da roça, andava sempre de calça, camisa social e chapéu de palha. Tinha um relógio de prata que comprou numa das vezes que foi à cidade e tinha o maior orgulho quando alguém lhe perguntava as horas. Sempre sacudia o relógio para ouvir o barulho das correntes tilintando, antes de responder. Apesar dos quatro filhos, apresentava-se como solteiro à noite. Isso provocou o efeito contrário em dona Zumira: alguém sempre era atraído pelo seu olhar terno, mas a amargura do coração, afiou sua língua. Porém, todos ao seu redor, inclusive seus filhos, não levavam a mal as patadas, mas a perdoavam, pois a doçura que faltava no falar, era compensada nos gestos. Dona Zumira não sabia o que era pensar em si. Encontrou consolo das suas mágoas na dedicação aos filhos. Vendo que nem o perdão nem suas palavras eram capazes de mudar o marido, resignou-se a entregar sua vida, sua saúde e juventude aos outros. Os quatro filhos do casal ainda eram pequenos, seus pés sempre descalços e sujos, pisavam a primeira infância. O mais velho, tinha seis anos. Aprendeu desde cedo a independência que a vida no sertão exigia. Saía para o mato com a baladeira, à procura de passarinhos para levar, muito orgulhoso, à mãe, o jantar dos menores. Tornou-se o líder do bando de irmãos. O de cinco anos, era ingênuo, para além da idade. Acreditava em tudo o que diziam. Era terrivelmente gago, e alvo constante das piadas e das impaciências dos irmãos, mas, também, a resignação bateu cedo em sua porta. Quando alguém ria de suas tentativas malsucedidas para formular uma frase, fingia não ouvir os risos, continuava até conseguir concluí-la, então calava-se, dizia “hum” e perdoava. A terceira de 4, era uma esperta moleca que andava sempre com os cabelos soltos e grudados no suor da testa. Aprendeu a ser um pouco menino andando com os mais velhos. Subia corajosamente nas altíssimas e imponentes mangueiras antigas, trepava-se nos galhos a fim de pegar a manga rosa que lhe atraiu, porém, a altura lhe metia medo quando olhava para baixo, fazendo a coragem sumir. Chorava e gritava “mamãe” até ser socorrida pelos fortes braços maternos.
Entre os filhos mais velhos e a mais nova, existe um vão, como as páginas em branco quando termina o Antigo e começa o Novo Testamento, simbolizando os anos de silêncio de Deus para com Seu povo. Entre o mais velho e a mais nova, haveriam mais dois irmãos, gêmeos, se as condições desfavoráveis do parto de dona Zumira não os tivessem levado. Nasceram doentes, muito fracos. Uma noite, um morreu de morte súbita. Passados dois meses, o outro, dando muita falta do irmão, mesmo pequenino, resolveu segui-lo na jornada misteriosa do além. Estavam enterrados no quintal. Duas cruzes feitas de galhos, fincadas em dois montinhos de terra, cobertos com plantinhas kalanchoe que dona Zumira plantou para cobrir os túmulos minúsculos. Dona Zumira e seu Anastácio, cada um a seu modo, estavam apreensivos com a recém-nascida. A menina nascera franzina, o peito seco não a satisfazia, chorava o tempo inteiro. Ainda não tinha nome. Era chamada “a menina”. Não havia nome para ela porque não havia nada além do horizonte de dona Zumira e Anastácio. Os tempos atuais secaram toda a esperança no sertão. O estio veio forte transformando a vida da jovem família em um deserto hostil. Foi quando ouviram falar de uma terra fecunda, em que se plantando, tudo dava; e a fé renasceu no coração dos jovens sertanejos. Ouviram, de retirantes que passavam por lá, a promessa de uma região dotada de água, chuva, rios e terras disponíveis para o trabalho na lavoura. Empolgados com a imaginação desse oásis, o jovem casal não via a hora de regar a terra prometida com a primeira gota de suor a cair da testa pelo esforço da enxada. Porém, a viagem seria longa, cansativa e perigosa. Uma empreitada hostil para as crianças e, principalmente, para a frágil recém-nascida. A dúvida colocou-se na frente da esperança.
- Está certo isso, Anastácio? Botar em risco a vida da Menina?
- Mas ela já não corre risco aqui nessa terra seca, mulher?
No meio da dúvida que preenchia os dias do casal, Anastácio saiu e não voltou. Durante três dias nada se soube dele, enquanto Zumira assustou-se, não com o sumiço do marido – esse já não a espantava mais – mas, com a doença que se abateu sobre a Menina. Sozinha, Zumira, pegou o magro jumento da família, pendurou um cesto de palha na sela do animal, no qual deitou Menina, com os outros filhos em seu encalço e foi em busca da casa mais próxima, 6 horas de caminhada. A casa tão esperada era de uma comadre de Zumira. Sua amiga na época de solteira, agora também casada, não vivia em condições muito melhores que as dela. Porém, o marido era peão de um fazendeiro que, atingido também pela seca, prometera ir embora para a cidade grande e levá-lo consigo. A comadre de Zumira cuidou da recém-nascida com o leite que arranjou na casa do patrão do marido, além de toda sorte de ervas e remédios disponíveis em seu repertório de crendices populares. Durante dois dias, a comadre – que não tinha filhos - cuidou da Menina e afeiçoou-se a ela e, condoendo-se da pobrezinha, ofereceu-se para criá-la. A oferta foi prontamente repelida.
Porém, Zumira pensou nos dois filhos mortos no quintal. Pensou nos potes e panelas vazias. Olhou para os filhos brincando lá fora, rindo, esquecidos da fome que trouxeram de casa. Lembrou de uma vez em que dois missionários apareceram lá para as bandas de sua casa. Pediram água e ela desejava lhes oferecer também um café coado. Falaram de um lugar onde mana leite e mel. De um
lugar de fartura, de um banquete que durará para sempre. Falaram de um pão que quem o come nunca mais terá fome, falaram de um lugar onde a morte não entra e um rio de correntes que alegram a cidade. Será possível existir um lugar assim? No mesmo instante, já com Menina restabelecida, Zumira fez o caminho de volta.
Viu de longe que Anastácio estava em casa, depois de fugir da responsabilidade de quatro filhos famintos, voltou a enfiar a enxada na terra morta, como a procura de redimir seus pecados. Zumira não disse nada, não fez nada. Quando Anastácio sentou-se à mesa para comer da ajuda que Zumira tinha trazido, esta disse:
- Vou-me embora amanhã com meus filhos. Se quiser, pode me acompanhar. Deixei a Menina com a Comadre. Deus há de me perdoar.
Anastácio, com os olhos cheios d’água, parou de comer e cerrou os punhos e a boca. Queria bater em alguém, apesar de não ser violento. Não era seu feitio bater nos filhos, nem na mulher. Queria bater em si mesmo. Sentia-se culpado e fracassado, o orgulho estava ferido e sangrava, assim como a mão, de onde escorria o sangue das unhas grandes, cravadas na palma da mão, pela raiva contida. Fracassara como pai, como marido, deixou os filhos morrerem, vai abandonar a terra em que nasceu e a última filha que Deus lhe deu.
A manhã seguinte raiou. Mas a família retirante não esperou o sol carrasco. Eles já estavam longe de casa, fugindo do lindo astro brilhante que se tornara seu inimigo. A pé, andavam devagar. Com uma mão, Zumira carregava um pote com farinha pura na cabeça; com a outra, segurava a
menina que, agora, era a mais nova, escanchada no quadril. O mais velho vinha atrás, carregando uma trouxa de roupa nos ombros, receoso da nova vida que o aguarda. Anastácio vai na frente com seu chapéu de palha, carregando o menino do meio nas costas, trouxas de roupas e uma cabaça grande de água nos ombros e uma espingarda enferrujada e quase inútil nas mãos. Assim começou a jornada de uma família rumo à sua Canaã. Atrás deles, o vento levantava a poeira do caminho, como se o sertão desse seu último adeus.




ana, quanta beleza há nos seus escritos! a descrição, a singularidade e humanidade dos personagens, a poesia que enche cada palavra. incrível que quando eu acho que não consigo te admirar mais, ainda assim me surpreendo com os talentos e dons inúmeros que Deus te concedeu! obrigada por compartilhar essa história. meus olhos se encheram de lágrimas ao ler alguns trechos. que você continue sendo esse baita instrumento nas mãos de Cristo (e essa grande inspiração para mim).
cordialmente,
sua admiradora, Belohá.